Representando o Irrepresentável: a Proibição de Imagens de Cristo na Escritura, na Teologia e na História
- Breno L. Macedo
- 18 de jul. de 2024
- 8 min de leitura
Por Breno L. Macedo
“São estes, ó Israel, os teus deuses, que te tiraram da terra do Egito”, disse o povo hebreu logo após Aarão fazer-lhes um bezerro fundido. Apesar do plural “deuses”, é certo que o povo tinha Javé em mente uma fez que em resposta Arão disse: “Amanhã será festa ao SENHOR”, usando o nome pactual de Deus (Ex 32:4-5). Não há dúvidas de que as consequências para Israel com essa clara quebra do segundo mandamento (Ex. 20:4-5) foram terrívelmente amargas. O povo foi divido e os idólatras foram sentenciados à morte sendo que os executores foram seus próprios irmãos, amigos e vizinhos (Ex 32:27). Deus claramente condena a tentativa de representar visivelmente a pessoa divina.
Entretanto, ao longo da história da fé cristã muitos continuam a desafiar a ira divina quanto a essa questão, especialmente no que se refere a representações visíveis do Filho de Deus, o Senhor Jesus Cristo. Papistas continuam fazendo e adorando imagens de Cristo. Protestantes de diferentes tradições sentem-se à vontade para utilizar imagens de Jesus, seja em materiais para escola dominical, desenhos em Bíblias para crianças, ou através do ator da série “The Chosen”. Não estariam esses incorrendo no mesmo pecado odioso que os Hebreus caíram no deserto?
Que representações da imagem de Jesus Cristo claramente quebram o segundo mandamento não há qualquer dúvida ou discussão. Essa quebra é facilmente demonstrada através de um simples silogismo. Primeira premissa: Deus proíbe no segundo mandamento qualquer representação visível da pessoa divina. Segunda premissa: Jesus Cristo é uma pessoa divina. Conclusão: Deus proíbe no segundo mandamento a representação visível de Jesus Cristo. Se Jesus Cristo é Deus encarnado, e afirmamos que Ele é, então conclui-se lógica e inescapavelmente que Ele mesmo proibiu qualquer representação de sua pessoa no Decálogo.
É muito comum escutar da parte daqueles que usam figuras de Cristo que eles apenas representam a humanidade de Cristo, excluindo sua divindade. Entretanto, esse pensamento foge da Cristologia ortodoxa firmada no quinto século através do Concílio de Calcedônia e encontrada no credo Atanasiano. A doutrina da união hipostática (união das duas naturezas de Cristo), conforme expressa na ortodoxia bíblica, afirma que Jesus tem sim duas naturezas, mas que elas jamais estão separadas, e nunca estão misturadas. Tentar fazer uma das duas coisas é cair em heresias como Nestorianismo ou o monofisitismo. Nesse caso, separar a natureza divina de Cristo de sua natureza humana para representar esta última em um pedaço de cartolina, numa tela de pintura, ou na tela do cinema é uma expressão moderna da heresia Nestoriana derrotada em 451 AD.
A simples leitura da decisão em Calcedônia confirma essa conclusão: “Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis e imutáveis, inseparáveis e indivisíveis; a distinção de naturezas de modo algum é anulada pela união, mas, pelo contrário, as propriedades de cada natureza permanecem intactas, concorrendo para formar uma só pessoa e subsistência ; não dividido ou separado em duas pessoas.”[1] De forma semelhante o credo Atanasiano explica esse mesmo entendimento: “Porque, assim como a alma racional e o corpo formam um só homem, assim também a divindade e a humanidade formam um só Cristo” (Artigo 37). Não é possível representar apenas a natureza humana de Cristo sem envolver também a sua natureza divina devido a união hipostática.
As implicações da união hipostática e do pensamento ortodoxo sobre a pessoa de Cristo são devastadoras para aqueles que afirmam ser possível utilizar representações gráficas de Jesus para fins didáticos. O propósito do ensino é comunicar aquilo que é verdade. Assim, imagens de Jesus falham miseravelmente nesse propósito. Se alguém aponta para uma imagem e diz “esse é Jesus”, uma vez que Jesus é Deus e, portanto, deve ser adorado, a imagem deve ser adorada. Mas se a imagem é apenas uma natureza de Cristo (nesse caso a humana), então a imagem não pode ser Jesus, pois sua natureza humana nunca está separada da divina, e, portanto, a imagem é falsa.
Juntamente com a proibição do segundo mandamento e as implicações da união hipostática, adiciona-se a total ausência da utilização de imagens de Cristo durante o período da igreja apostólica. Não há qualquer evidência no Novo Testamento de que os apóstolos utilizaram imagens de Cristo na propagação do evangelho e no ensino a seu respeito. Se havia um grupo capaz de prover uma descrição precisa da aparência de Cristo (seu peso, sua altura, seus traços faciais) esses seriam os apóstolos. Eles tinham excelentes ferramentas para representar a imagem de Cristo tendo em vista a cultura Greco-Romana (pense nos bustos do Césares). Mas o Novo Testamento é completamente silencioso com relação a essa questão. Não há qualquer preocupação da parte dos apóstolos em pregar o evangelho ou ensinar sobre Jesus através de representações artísticas.
É importante perceber o novo golpe que aqueles que defendem o uso de imagens de Jesus para fins didáticos recebem aqui. Novamente, o propósito do ensino é comunicar aquilo que é verdade. Entretanto, uma vez que não se tem qualquer informação a respeito da aparência de Jesus, é impossível fazer qualquer representação minimamente verdadeira dEle. Em adição, a natureza humana de Cristo hoje não é a mesma vista durante sua vida e ministério, estando Ele sentado à direita do Pai e glorificado. Não é apenas impossível representar Jesus de forma verdadeira como Ele foi visto no período de sua encarnação. É impossível representar como sua natureza humana é hoje, como ela se encontra nos céus, e como o veremos no seu retorno. Mais uma vez a função didática falha e o mandamento de Cristo para não fazer imagens é quebrado.
Mas longe desse ser um argumento baseado em silêncio, é importante considerar o testemunho do Novo Testamento com relação a pregação e ensino da pessoa e obra do Senhor Jesus Cristo. Os sermões que encontramos registrados no livro de Atos, ao invés de recorrerem a representações da imagem de Cristo, provém descrições detalhadas de sua vida e obra (Atos 2:14-36). Escrevendo aos Gálatas, Paulo afirma que forneceu a eles uma explicação tão detalhada a respeito de Cristo que o efeito foi como se eles tivessem visto Jesus com os próprios olhos. Porém, ao invés de utilizar imagens, Paulo os entregou “a pregação da fé” (Gálatas 3:1-2). Cristo é visto, mas não através de figuras, apenas através da detalhada exposição de sua pessoa e da redenção que Ele conquistou.
Não é surpresa, portanto, encontrar várias manifestações sobre esse assunto na história da Igreja. Não são poucos os exemplos de condenação do uso de imagens de Jesus presentes nos escritos de pais da Igreja. Hipólito (170-236 AD) em sua obra “A Refutação de todas as Heresias” afirmou:
“Esses hereges foram enviados de Satanás com o propósito de amaldiçoar o divino nome da Igreja perante o gentios. (E o objetivo do diabo é), que os homens ouçam, agora de uma maneira e depois de outra maneira, as doutrina desses (hereges), e pensem que todos nós somos pessoas da mesma estirpe, e tampem os ouvidos para a pregação da verdade, ou que também eles, observando, (sem rejeição), todos esses ensinos deles (dos hereges), falem maledicentemente sobre nós ... E eles fazem imagens falsas de Cristo, alegando terem elas existido no tempo (durante o qual nosso Senhor esteve na terra, e que elas foram confeccionadas) por Pilatos.”[1]
Lactâncio (250-325 AD) por sua vez condenou a utilização de imagens de forma generalizada naquilo que diz respeito a religião por sua incompatibilidade com a verdade:
“Pois se religião consiste em coisas divinas, e não existe nada divino exceto aquilo que é celestial; segue necessariamente que imagens são destituídas de religião, uma vez que nada pode haver de celestial naquilo que é feito de elementos terrenos. E isso, sem dúvidas, é óbvio para o aquele que é sábio pelo próprio termo. Pois tudo aquilo que é uma imitação, por necessidade é falso; nem pode ainda receber o título de verdadeiro aquilo que imita fraudulentamente a verdade através do engano. Mas se qualquer imitação não é em particular algo da mais alta seriedade, mas é apenas um divertimento ou uma brincadeira, então não há nada de religioso em imagens, e sim apenas uma mímica de religião. Aquilo que é verdade é, portanto, deve ser preferido a todas as coisas que são falsas; coisas terrenas serão destruídas, para que obtenhamos coisas celestes.”[2]
Epifânio de Salamis (315-403 AD) associou a utilização de imagens de Cristo não com o Cristianismo ortodoxo mas com a seita herética dos gnósticos:
“Eles [os Gnósticos] possuem imagens – alguns, em adição, tem imagens feitas de ouro, prata e outros materiais – e dizem que tais imagens são auxílios de Jesus, e que foram feitas por Poncio Pilatos! Sendo assim, esses auxílios são representações do Jesus verdadeiro durante sua peregrinação entre os homens! (10) Eles possuem imagens como essas em segredo, e também a de certos filósofos em adição – Pitágoras, Platão, Aristóteles, e outros – e colocam esses auxílios de Jesus ao lado desses filósofos. E tendo os feitos, eles os adoram e celebram mistérios pagãos. Pois uma vez que fizeram essas imagens, eles seguem inevitavelmente a prática dos pagãos – quais são as práticas dos pagãos a não ser sacrifícios e coisas mais? (11) Eles afirmam que salvação é algo limitado à alma somente, e que não envolve o corpo.”[3]
Um concílio da igreja reunido em Constantinopla em 754 AD condenou a utilização de qualquer tipo de representação da natureza humana de Cristo. Seu argumento segue o pensamento do Concílio de Calcedônia: é impossível representar separadamente aquilo que está perfeitamente unido:
“Qualquer um, portanto, que faz imagens de Cristo ou está representando a Divindade, a qual não pode ser representada, e a mistura com a humanidade (assim como os Monofisistas), ou eles representam o corpo de Cristo como se não fosse divino, e separado, e como uma pessoa à parte, assim como os Nestorianos ... A única figura admissível da humanidade de Cristo, entretanto, é o pão e o vinho da santa Ceia. Essa, e nenhuma outra forma, esse e nenhum outro tipo, foi o que Ele escolheu para representar sua encarnação ...”[4]
Ao encontrar liberdade do cativeiro Babilônico da igreja romana, o pensamento Reformado retornou às origens da Cristologia ortodoxa e de forma unânime rejeitou a utilização de qualquer representação visível de Cristo como é possível confirmar através dos seus documentos oficiais como a Segunda Confissão Helvética (capítulo IV), Catecismo Maior de Westminster (pergunta 109), bem como pelo testemunho exaustivo dos reformadores em suas obras. É lamentável e desonesto que igrejas que se identificam hoje como reformadas neguem suas origens adotando como algo permitido aquilo que foi unanimemente rejeitado no passado.
Talvez a pergunta que fique agora é: então como vamos ensinar as nossas crianças? A resposta é simples: assim como Noé ensinou a seus filhos, da mesma maneira que Abraão ensinou a Isaque, assim como Isaque ensinou a Jacó, assim como as crianças aprenderam por séculos em Jerusalém, assim como os apóstolos ensinaram aos primeiros cristãos, sem representações visíveis da divindade, utilizando apenas aquilo que o Senhor mesmo ordenou: Sua palavra e Seus sacramentos. Acaso somos diferentes, melhores ou piores, do que os nossos irmãos de outrora?
[1] Henry Bettenson, Documentos da Igreja Cristã (SP: ASTE/Simpósio, 1998), p. 101.
[2] Hippolytus of Rome, “The Refutation of All Heresies,” in Fathers of the Third Century: Hippolytus, Cyprian, Novatian, Appendix, ed. Alexander Roberts, James Donaldson, and A. Cleveland Coxe, trans. J. H. MacMahon, vol. 5, The Ante-Nicene Fathers (Buffalo, NY: Christian Literature Company, 1886), 114.
[3] Lactantius, “The Divine Institutes,” in Fathers of the Third and Fourth Centuries: Lactantius, Venantius, Asterius, Victorinus, Dionysius, Apostolic Teaching and Constitutions, Homily, and Liturgies, ed. Alexander Roberts, James Donaldson, and A. Cleveland Coxe, trans. William Fletcher, vol. 7, The Ante-Nicene Fathers (Buffalo, NY: Christian Literature Company, 1886), 67–68.
[4] Epiphanius of Salamis, The Panarion of Epiphanius of Salamis, 2 vols. Nag Hammadi Studies vols 35–36. trans. Frank Williams (Leiden: E. J. Brill, 1987), 27, 6, 9–10 (1.105).
[5] Percival, Henry R. 1900. The Seven Ecumenical Councils. New York, Oxford: Scribner’s ; Parker, 544. Acessível em: https://archive.org/details/sevenecumenicalc00perc/page/543/mode/1up.
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